São Francisco de Assis

São Francisco de Assis

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Capítulo 16. Como S. Francisco recebeu o conselho de S. Clara e do santo Frei Silvestre de que devia, pregando, converter muita gente; e pregou às aves e fez calar as andorinhas.




O humilde servo de Cristo S. Francisco, pouco tempo depois de sua
conversão, tendo já reunido e recebido na Ordem muitos
companheiros, entrou a pensar muito e ficou em dúvida sobre o que
devia fazer, se somente entregar-se à oração, ou bem a pregar
algumas vezes: e sobre isso desejava muito saber a vontade de
Deus.

E porque a humildade que tinha não o deixava presumir de si nem
de suas orações, pensou de conhecer a vontade divina por meio das
orações dos outros.

Pelo que chamou Frei Masseo e disse-lhe assim: "Vai a Soror Clara e
dize-lhe da minha parte que ela com algumas das mais espirituais
companheiras rogue devotamente a Deus seja de seu agrado
mostrar-me o que mais me convém: se me dedicar à pregação ou
somente à oração.

E depois vai a Frei Silvestre e dize-lhe o mesmo".

Este fora no século aquele monsior Silvestre, que vira uma cruz de
ouro sair da boca de S. Francisco, a qual era tão alta que ia até ao
céu e tão larga que tocava os extremos do mundo.

Era este Frei Silvestre de tanta devoção e de tanta santidade, que
tudo quanto pedia a Deus obtinha e muitas vezes falava com Deus; e
por isso S. Francisco tinha por ele grande devoção. Foi Frei Masseo,
e conforme a ordem de S. Francisco, deu conta da embaixada
primeiramente a S. Clara e depois a Frei Silvestre. O qual, logo que a
recebeu, imediatamente se pôs em oração e, rezando, obteve a
resposta divina, e voltou a Frei Masseo e disse-lhe assim: "Isto disse
Deus para dizeres ao irmão Francisco: que Deus não o chamou a
este estado somente para si; mas para que ele obtenha fruto das
almas e que muitos por ele sejam salvos".

Obtida esta resposta, Frei Masseo voltou a S. Clara para saber o que
ela tinha conseguido de Deus; e respondeu que ela e outra companheira tinham obtido de Deus a mesma resposta que tivera
Frei Silvestre. Com isto tornou Frei Masseo a S. Francisco; e S.
Francisco o recebeu com grandíssima caridade, lavando-lhe os pés
e preparando-lhe o jantar.

E depois de comer, S. Francisco chamou Frei Masseo ao bosque e
ali, diante dele, se ajoelhou e tirou o capuz, pondo os braços em
cruz, e perguntou-lhe: "Que é que ordena que eu faça o meu Senhor
Jesus Cristo?" Respondeu Frei Masseo: "Tanto a Frei Silvestre
como a Soror Clara e à irmã, Cristo respondeu e revelou que sua
vontade é que vás pelo mundo a pregar, porque ele não te escolheu
para ti somente, mas ainda para a salvação dos outros". E então S.
Francisco, ouvindo aquela resposta e conhecendo por ela a vontade
de Cristo, levantou-se com grandíssimo fervor e disse: "Vamos em
nome de Deus".

E tomou como companheiros a Frei Masseo e a Frei Ângelo, homens
santos. E caminhando com ímpeto de espírito, sem escolher
caminho nem atalho, chegaram a um castelo que se chamava
Savurniano, e S. Francisco se pôs a pregar e primeiramente ordenou
às andorinhas, que cantavam, que fizessem silêncio até que ele
tivesse pregado; e as andorinhas obedeceram.

E ali pregou com tal fervor que todos os homens e todas as
mulheres daquele castelo, por devoção, queriam seguir atrás dele e
abandonar o castelo. Mas S. Francisco não permitiu, dizendo-lhes:
"Não tenhais pressa e não partais; e ordenarei o que deveis fazer
para a salvação de vossas almas". E então pensou em criar a Ordem
Terceira para a universal salvação de todos. E assim deixando-os
muito consolados e bem dispostos à penitência, partiu-se daí e veio
entre Cannara e Bevagna.

E passando além, com aquele fervor levantou os olhos e viu
algumas árvores na margem do caminho, sobre as quais estava uma
quase infinita multidão de passarinhos; do que S. Francisco se
maravilhou e disse aos companheiros: "Esperai-me aqui no
caminho, que vou pregar às minhas irmãs aves". E entrando no
campo começou a pregar às aves que estavam no chão; e
subitamente as que estavam nas árvores vieram a ele e todas
ficaram quietas até que S. Francisco acabou de pregar; e depois não
se partiram enquanto ele não lhes deu a sua bênção.

E conforme contou depois Frei Masseo a Frei Tiago de Massa,
andando S. Francisco entre elas a tocá-las com a capa, nenhuma se
moveu. A substancia da prédica de S. Francisco foi esta: "Minhas
irmãs aves, deveis estar muito agradecidas a Deus, vosso Criador, e
sempre em toda parte o deveis louvar, porque vos deu liberdade de
voar a todos os lugares, vos deu urna veste duplicada e triplicada;
também porque reservou vossa semente na Arca de Noé, a fim de
que vossa espécie não faltasse ao mundo; ainda mais lhe deveis
estar gratas pelo elemento do ar que vos concedeu.

Além disto não plantais e não ceifais; e Deus vos alimenta e vos dá
os rios e as fontes para beberdes, e vos dá os montes e os vales
para vosso refúgio, e as altas arvores para fazerdes vossos ninhos
e, porque não sabeis fiar nem coser, Deus vos veste a vós e aos
vossos filhinhos; muito vos ama o vosso Criador, pois vos faz
tantos benefícios, e portanto guardai-vos, irmãs minhas, do pecado
de ingratidão e empregai sempre os meios de louvar a Deus".
Dizendo-lhes S. Francisco estas palavras, todos e todos estes
passarinhos começaram a abrir os bicos, a estender os pescoços, e
a abrir as asas, e a reverentemente inclinar as cabeças para o chão,
e por seus atos e seus cantos a demonstrar que as palavras do
santo pai lhes deram grandíssima alegria. E S. Francisco juntamente
com elas se rejubilava, se deleitava, se maravilhava muito com tal
multidão de pássaros e com a sua belíssima variedade e com a sua
atenção e familiaridade; pelo que ele devotamente nelas louvava o
Criador.

Finalmente, terminada a pregação, S. Francisco fez sobre elas o
sinal-da-cruz e deu-lhes licença de partir; e então todas aquelas aves
em bando se levantaram no ar com maravilhosos cantos; e depois,
seguindo a cruz que S. Francisco fizera, dividiram-se em quatro
grupos: um voou para o oriente e outro para o ocidente, o terceiro
para o meio-dia, o quarto para o aquilão, e cada bando cantava
maravilhosamente; significando que como por S. Francisco,
gonfaloneiro da cruz de Cristo, lhes fora pregado e sobre elas feito o
sinal-da-cruz, segundo o qual se dividiram, cantando, pelas quatro
partes do mundo; assim a pregação da cruz de Cristo renovada por
S. Francisco devia ser levada por ele e por seus irmãos a todo o
mundo; os quais frades como os pássaros, nada de próprio
possuindo neste mundo, confiam a vida unicamente à Providência
de Deus.



Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 15. Como S. Clara comeu com S. Francisco e com os seus companheiros em S. Maria dos Anjos.




S. Francisco, quando estava em Assis, freqüentes vezes visitava S.
Clara, dando-lhe santos ensinamentos. E tendo ela grandíssimo
desejo de comer uma vez com ele, o que lhe pediu muitas vezes, ele
nunca lhe quis dar esta consolação.

Vendo os seus companheiros o desejo de S. Clara, disseram a S.
Francisco: "Pai, a nós nos parece que este rigor não é conforme à
caridade divina; que à irmã Clara, virgem tão santa, dileta de Deus,
não atendas em coisa tão pequenina como é comer contigo; e
especialmente considerando que ela pela tua pregação abandonou
as riquezas e as pompas do mundo.

E deveras, se te pedisse graça maior do que esta, devias concedê-la
à tua planta espiritual".

Então S. Francisco respondeu: "Parece-vos que devo atendê-la?" E
os companheiros: "Sim, pai: digna coisa é que lhe dês esta
consolação".

Disse então S. Francisco: "Pois se vos parece, a mim também. Mas,
para que ela fique mais consolada, quero que esta refeição se faça
em S. Maria dos Anjos; porque ela esteve longo tempo reclusa em S.
Damião: ser-lhe-á agradável ver o convento de S. Maria onde foi
tonsurada e feita esposa de Jesus Cristo; e ali comeremos juntos em
nome de Deus". Chegando o dia aprazado, S. Clara saiu do mosteiro
com uma companheira, e, acompanhada pelos companheiros de S.
Francisco, chegou a S. Maria dos Anjos e saudou devotamente a
Virgem Maria diante do altar onde fora tonsurada e velada; assim a
conduziram a ver o convento até à hora do jantar.

E nesse tempo S. Francisco mandou pôr a mesa sobre a terra nua,
como de costume. E chegada a hora de jantar, sentaram-se S.
Francisco e S. Clara, juntos, e um dos companheiros de S. Francisco
com a companheira de S. Clara, e depois todos os companheiros de
S. Francisco se acomodaram humildemente à mesa.

Como primeira vianda S. Francisco começou a falar de Deus tão
suave, tão clara, tão maravilhosamente, que, descendo sobre eles a abundância da divina graça, ficaram todos arrebatados em Deus.

E estando assim arrebatados, com os olhos e as mãos levantados
para o céu, os homens de Assis e de Betona e os da região
circunvizinha viram que S. Maria dos Anjos e todo o convento e a
selva, que havia então ao lado do convento, ardiam inteiramente; e
parecia que fosse um grande incêndio que ocupasse a igreja, o
convento e a selva, ao mesmo tempo. Pelo que os assisienses com
grande pressa correram para ali, crendo firmemente que tudo estava
ardendo.

Mas, chegando ao convento e não encontrando nada queimado,
entraram dentro e acharam S. Francisco com S. Clara e com toda a
sua companhia arrebatados em Deus em contemplação, e
assentados ao redor desta humilde mesa. Pelo que compreenderam
ter sido aquilo fogo divino e não material, o qual Deus tinha feito
aparecer miraculosamente para demonstrar e significar o fogo do
divino amor no qual ardiam as almas daqueles santos frades e
santas monjas; de onde voltaram com grande consolação em seus
corações e com santa edificação.

Assim, passado grande espaço de tempo, S. Francisco voltando a si
e S. Clara juntamente com os outros, e sentindo-se bem confortados
com o cibo espiritual, não cuidaram do cibo corporal.

E assim, terminado aquele bendito jantar, S. Clara, bem
acompanhada, voltou a S. Damião. Pelo que as irmãs ao vê-la
tiveram grande alegria; porque temiam que S. Francisco a tivesse
mandado dirigir um outro mosteiro qualquer, como já mandara Soror
Inês, sua santa irmã, para dirigir como abadessa o mosteiro de
Monticelli de Florença: e S. Francisco de uma vez dissera a S. Clara:
"Prepara-te, que poderei talvez precisar mandar-te a outro
convento".

E ela, como filha da santa obediência, respondera: "Pai, estou
sempre pronta a ir aonde me mandares". E portanto as irmãs muito
se alegraram quando a viram voltar; e S. Clara ficou de ora em diante
muito consolada.



Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 14. Como S. Francisco, estando com os companheiros a falar de Deus, ele apareceu no meio deles.




Estando S. Francisco uma vez, nos princípios da Ordem, recolhido
com os seus companheiros a falar de Cristo, em um convento, no
fervor de espírito mandou a um deles que em nome de Deus abrisse
a boca e falasse de Deus o que o Espírito Santo lhe inspirasse.

Obedecendo o irmão à ordem e falando maravilhosamente de Deus,
S. Francisco lhe impôs silêncio e mandou a outro irmão que fizesse
o mesmo.

Obedecendo este, e falando sutilissimamente Deus, S. Francisco
lhe impôs o silêncio e ordenou ao terceiro que falasse de Deus. O
qual semelhantemente começou a falar tão profundamente das
coisas secretas de Deus, que certamente S. Francisco conheceu que
ele, como os dois outros, falava pelo Espírito Santo. E isto ainda se
demonstrou por nítido sinal; porque, estando neste falar, apareceu
Cristo bendito no meio deles sob as espécies e em forma de um
jovem belíssimo, e abençoando-os, encheu-os a todos de tanta
doçura, que todos foram arrebatados de si mesmos, sem sentir nada
deste mundo.

E depois, voltando eles a si, disse-lhes S. Francisco: "Irmãos meus
caríssimos, agradecei a Deus, que quis pela boca dos simples
revelar os tesouros da divina sapiência; porque Deus é aquele que
abre a boca aos mudos e faz falar sapientissimamente a língua dos
simples".

Em seu louvor. Amém.

Capítulo 13. Como S. Francisco e Frei Masseo puseram sobre uma pedra junto a uma fonte o pão que haviam mendigado, e S. Francisco muito louvou a pobreza. Depois rogou a Deus e a S. Pedro e a S. Paulo que lhes dessem o amor da santa pobreza; e como lhes apareceram S. Pedro e S. Paulo.




O maravilhoso servo e seguidor de Cristo, isto é, monsior S.
Francisco, para se conformar perfeitamente com Cristo em todas as
coisas, o qual, segundo o que diz o Evangelho, mandou os
discípulos dois a dois a todas aquelas cidades e regiões aonde
devia ir; depois que, a exemplo de Cristo, reunira doze
companheiros, os enviou pelo mundo a pregar dois a dois.

E, para lhes dar o exemplo de verdadeira obediência, começou ele
primeiramente a ir a exemplo de Cristo, o qual começou
primeiramente a fazer do que a ensinar.

Pelo que, tendo designado aos companheiros as outras partes do
mundo, ele, tomando Frei Masseo por seu companheiro, seguiu para
a província da França.

E chegando um dia, com muita fome, a uma cidade, andaram,
segundo a Regra, mendigando pão pelo amor de Deus; e S.
Francisco foi por uma parte e Frei Masseo por outra. Mas, por ser S.
Francisco um homem muito desprezível e pequeno de corpo e por
isso reputado um vil pobrezinho por quem não o conhecia, só
recolheu algumas côdeas e pedacinhos de pão seco.

Mas a Frei Masseo, pelo fato de ser um homem alto e cheio de
corpo, deram muitos e bons pedaços grandes e pães inteiros.
Acabada a mendigação, reuniram-se fora da cidade para comer em
um lugar onde havia uma bela fonte e junto uma bela pedra larga,
sobre a qual cada um colocou as esmolas recebidas. E, vendo S.
Francisco que os pedaços de Frei Masseo eram em maior número e
mais belos e maiores que os dele, mostrou grande alegria e disse
assim: "Ô Frei Masseo, não somos dignos deste grande tesouro".

E, repetindo estas palavras várias vezes, respondeu-lhe Frei
Masseo: "Pai, como se pode chamar tesouro, onde há tanta pobreza
e falta de coisas que necessitamos? Aqui não há toalha, nem faca,
nem garfo, nem prato, nem casa, nem mesa, nem criada, nem criado".

Então disse S. Francisco: "Isto é o que considero grande tesouro,
porque não há coisa nenhuma feita pela indústria humana; mas o
que aqui existe é feito pela Providência divina, como se vê
manifestamente pelo pão mendigado, pela mesa de pedra tão bela e
pela fonte tão clara: por isso quero que peçamos a Deus que o
tesouro da santa pobreza tão nobre, o qual tem Deus para servir,
seja amado de todo o coração".

E ditas estas palavras e rezada a oração e tomada a refeição
corporal com aqueles pedaços de pão e aquela água, levantaram-se
para ir à França, e, encontrando uma igreja, disse S. Francisco ao
companheiro: "Entremos nesta igreja para orar". E S. Francisco se
pôs em oração atrás do altar: e nesta oração recebeu da divina visita
tão excessivo fervor, que inflamou tão fortemente sua alma no amor
da santa pobreza que, pela cor da face como pela boca
excessivamente aberta, parecia lançar chamas de amor.

E vindo assim como abrasado ao companheiro, disse-lhe: "A. A. A.,
Frei Masseo, entrega-te a mim". Assim disse três vezes; e na terceira
vez S. Francisco com o hálito levantou Frei Masseo no ar, e o lançou
diante de si à distância de uma comprida lança; de que Frei Masseo
teve grandíssimo espanto, e depois contou aos companheiros que
naquela impulsão e suspensão, que lhe deu S. Francisco com o
hálito, sentiu tal doçura na alma e consolação do Espírito Santo
como nunca em sua vida sentira tanta.

E feito isto disse S. Francisco: "Companheiro caríssimo, vamos a S.
Pedro e S. Paulo, e roguemo-lhes que nos ensinem e nos ajudem a
possuir o desmesurado tesouro da santíssima pobreza; porque ela é
tesouro tão digníssimo e tão divino que não somos dignos de
possui-lo em nossos vilíssimos vasos; atendendo que ela é a virtude
celeste, pela qual todas as coisas terrenas e transitórias são
calcadas aos pés e pela qual todo obstáculo se afasta diante da
alma, a fim de que ela se possa livremente unir com o Deus eterno.

E ela esta virtude, a qual faz a alma presa à terra conversar no céu
com os anjos.

Esta é aquela que acompanhou Cristo na cruz; com Cristo foi
sepultada, com Cristo ressuscitou, com Cristo subiu ao céu, e a qual, e ainda nesta vida, concede às almas, que dela se enamoram,
agilidade para voar ao céu; para o que ela ainda guarda as armas da
verdadeira humildade e da caridade.

E por isso roguemos aos santíssimos apóstolos de Cristo, os quais
foram perfeitos amadores desta pérola evangélica, que nos
mendiguem esta graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que pela sua
santíssima misericórdia nos conceda o merecimento de sermos
verdadeiros amadores, observadores e humildes discípulos da
preciosíssima, amantíssima e evangélica pobreza".

E com este falar chegaram a Roma e entraram na igreja "de S. Pedro;
e S. Francisco se pôs a orar em um canto da igreja, e Frei Masseo
em outro; e conservando-se muito tempo em oração com muitas
lágrimas e devoção, apareceram a S. Francisco os santíssimos
apóstolos Pedro e Paulo com grande esplendor e disseram: "Pois
que pedes e desejas observar aquilo que Cristo e os santos
apóstolos observaram, Nosso Senhor Jesus Cristo nos envia a ti
para anunciar-te que tua oração foi escutada e te foi concedido por
Deus, a ti e a teus seguidores, perfeitissimamente o tesouro da
santíssima pobreza.

E ainda de sua parte te dizemos que a todo aquele que a teu
exemplo seguir perfeitamente este desejo está assegurada a
beatitude da vida eterna; e tu e todos os teus discípulos sereis por
Deus abençoados".

E, ditas estas palavras, desapareceram, deixando S. Francisco cheio
de consolação. O qual se levantou da oração e voltou ao
companheiro e perguntou-lhe se Deus lhe havia revelado alguma
coisa; e ele respondeu que não.

Então S. Francisco lhe disse como os santos apóstolos lhe haviam
aparecido, e o que tinham revelado. Do que, cada um cheio de
letícia, determinaram volver ao vale de Espoleto, deixando de ir à
França.



Em louvor de Cristo. Amém.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Capítulo 12. Como S. Francisco pôs Frei Masseo no ofício de porteiro, de esmoleiro e de cozinheiro: depois, a pedido dos outros irmãos, o dispensou.



S. Francisco, querendo humilhar Frei Masseo, a fim de que, pelos
muitos dons e graças que Deus lhe dava, não chegasse à vanglória,
mas pela virtude da humildade crescesse de virtude em virtude,
numa ocasião em que ele vivia em um convento solitário com
aqueles seus primeiros companheiros verdadeiramente santos, dos
quais um era Frei Masseo, disse um dia a Frei Masseo diante de
todos os companheiros: "O Frei Masseo, todos estes teus
companheiros têm a graça da contemplação e da oração; mas tu
possuís a graça da pregação da palavra de Deus, para satisfazer o
povo: e, portanto, quero, a fim de que os outros se possam entregar
à contemplação, que faças ofício de porteiro, de esmoleiro e de
cozinheiro; e quando os outros irmãos comerem, comeras fora da
porta do convento, de sorte que os que chegarem ao convento,
antes de baterem, os satisfaças com algumas boas palavras de
Deus; de sorte que não haja necessidade de outra pessoa ir à porta
a não ser tu: e isto o faças pelo merecimento da santa obediência".

Então Frei Masseo tirou o capuz e inclinou a cabeça, e
humildemente recebeu e executou esta obediência durante alguns
dias, desempenhando os ditos ofícios.

Pelo que os companheiros, como homens iluminados por Deus,
começaram a sentir no coração grande remorso, ao considerarem
que Frei Masseo era homem de grande perfeição como eles ou mais,
e sobre ele estava posto todo o peso do convento e não sobre eles.

Por este motivo encheram-se todos de igual coragem e foram pedir
ao pai santo que consentisse em distribuir com eles aqueles ofícios,
pois as suas consciências por coisa nenhuma podiam sofrer que
Frei Masseo suportasse tantas fadigas.

Ouvindo isto, S. Francisco cedeu ao pedido deles e consentiu em
seus desejos e, chamando Frei Masseo, disse-lhe: "Frei Masseo, os
teus companheiros querem compartir dos ofícios que te dei; e
portanto quero que os ditos ofícios sejam divididos".

Disse Frei Masseo com grande humildade e paciência: "Pai, o que me impões, em tudo ou em parte, considero feito por Deus". Então
S. Francisco, vendo a caridade dos outros e a humildade de Frei
Masseo, fez- lhes uma prática maravilhosa sobre a santa humildade,
ensinando-lhes que quanto maiores forem os dons e graças que
Deus nos der, mais devemos ser humildes: porque sem a humildade
nenhuma virtude é aceita por Deus.

E, feita a prédica, S. Francisco distribuiu os ofícios com grandíssima
caridade.



Em louvor de Cristo. Amém.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Capítulo 11. Como S. Francisco fez andar à roda muitas vezes a Frei Masseo e depois tomou o caminho de Siena.



Indo um dia S. Francisco com Frei Masseo por um caminho, o dito
Frei Masseo seguia um pouco na frente: e chegando a uma
encruzilhada, por cujos caminhos se podia ir a Florença, a Siena, e a
Arezzo, disse Frei Masseo: "Pai, que caminho devemos tomar?"
Respondeu S. Francisco: "Aquele que Deus quiser". Disse Frei
Masseo: "E como poderemos conhecer a vontade de Deus?"
Respondeu S. Francisco: "Pelo sinal que te vou mostrar; assim
ordeno a ti, pelo merecimento da santa obediência, que nesta
encruzilhada, no ponto onde tens o pé, rodes em torno de ti, como
fazem as crianças, e não pares de girar sem to dizer".

Então Frei Masseo começou a girar em roda, e tanto rodou que, pela
vertigem da cabeça a qual se gera por tais voltas, caiu muitas vezes
no chão. Mas, não dizendo S. Francisco que parasse e ele querendo
fielmente obedecer, recomeçava.

Por fim, quando girava fortemente, disse S. Francisco: "Pára ai e não
te movas". E ele estacou e S. Francisco lhe perguntou: "Voltado para
onde tens o rosto?" Respondeu Frei Masseo: "Para Siena".

Disse S. Francisco: "Este é o caminho que Deus quer que sigamos".
Andando por aquele caminho, Frei Masseo se maravilhava muito
com o que S. Francisco lhe mandou fazer, como a uma criança,
diante dos seculares que passavam: no entanto, pela reverência que
tinha, nada ousava dizer ao santo pai.

Ao se aproximarem de Siena, os habitantes da cidade souberam da
chegada do santo e vieram-lhe ao encontro; e por devoção o
levaram mais o companheiro ao bispado, de modo que eles não
tocaram o solo com os pés. Naquela hora alguns homens de Siena
combatiam entre si e dois já haviam morrido.

Chegando-se a eles, S. Francisco pregou-lhes tão devotamente e tão
santamente que os reduziu a todos à paz e grande união, juntandoos
em concórdia.

Pelo que, ouvindo o bispo de Siena falar desta santa obra que S.
Francisco fizera, convidou-o para sua casa e o recebeu com grandíssima honra naquele dia e também à noite. E na manhã
seguinte S. Francisco, verdadeiro humilde, que em suas santas
obras só procurava a glória de Deus, levantou-se bem cedo com o
seu companheiro e partiu sem o bispo saber.

Pelo que o dito Frei Masseo ia murmurando consigo mesmo,
dizendo pelo caminho: "Que coisa fez este santo homem? Fez-me
rodar como uma criança, e ao bispo, que o honrou tanto, não disse
nem ao menos uma palavra, nem agradeceu". E parecia a Frei
Masseo que S. Francisco se portara com indiscrição.

Mas depois, por inspiração divina voltando a si e repreendendo-se,
dizia em seu coração: "Frei Masseo, és muito soberbo, julgando as
obras divinas, e és digno do inferno por tua indiscreta soberba:
porque no dia de ontem o irmão Francisco fez obras tão santas que,
se as fizesse o anjo de Deus, não seriam mais maravilhosas.

Assim, se ele te houvesse mandado atirar pedras, deverias
obedecer: porque o que ele fez no caminho foi por ordem de Deus,
como o demonstrou o bom resultado que se seguiu: pois, se ele não
houvesse pacificado os que se combatiam, não somente muitos
corpos, como já haviam começado, estariam mortos a faca, mas
muitas almas o diabo teria carregado para o inferno; por esse motivo
tu és estultíssimo e soberbo, murmurando contra o que
manifestamente procedeu da vontade de Deus".

E todas estas coisas que dizia Frei Masseo seu coração, andando na
frente, foram por Deus reveladas a S. Francisco.

Donde, aproximando-se dele, S. Francisco disse assim: "Atenta nas
coisas em que pensas agora, porque são boas e úteis e inspiradas
por Deus; mas a tua primeira murmuração era cega e vá e soberba e
posta em tua alma pelo demônio".

Então Frei Masseo percebeu claramente que S. Francisco sabia dos
segredos do seu coração e certamente compreendeu que o espírito
da divina sabedoria dirigia todos os atos do santo pai.



Em louvor de Cristo. Amém.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Capítulo 10. Como Frei Masseo, quase gracejando, disse a S. Francisco que todo o mundo andava atrás dele, e ele respondeu que era para confusão do mundo e graça de Deus.




Estava uma vez S. Francisco no convento da Porciúncula com Frei
Masseo de Marignano, homem de grande santidade, discrição e
graça em falar de Deus; pela qual coisa S. Francisco o amava muito;
um dia, voltando S. Francisco de orar no bosque, e ao sair do
bosque, o dito Frei Masseo quis experimentar-lhe a humildade; foi-lhe
ao encontro e, a modo de gracejo, disse: "Por que a ti? Por que a
ti? Por que a ti?" S. Francisco respondeu: "Que queres dizer?" Disse
Frei Masseo: "Por que todo o mundo anda atrás de ti e toda a gente
parece que deseja ver-te e ouvir-te e obedecer-te? Não és homem
belo de corpo, não és de grande ciência, não és nobre: donde vem,
pois, que todo o mundo anda atrás de ti?" Ouvindo isto, S.
Francisco, todo jubiloso em espírito, levantando a face para o céu
por grande espaço de tempo, esteve com a mente enlevada em
Deus; e depois, voltando a si, ajoelhou-se e louvou e deu graças a
Deus; e depois, com grande fervor de espírito, voltou-se para Frei
Masseo e disse: "Queres saber por que a mim? Queres saber por
que a mim? Queres saber por que todo o mundo anda atrás de mim?
Isto recebi dos olhos de Deus altíssimo, os quais em cada lugar
contemplam os bons e os maus: porque aqueles olhos santíssimos
não encontraram entre os pecadores nenhum mais vil nem mais
insuficiente nem maior pecador do que eu; e assim, para realizar
esta operação maravilhosa, a qual entendeu de fazer, não achou
outra criatura mais vil sobre a terra; e por isso me escolheu para
confundir a nobreza, e a grandeza e a força e a beleza e a sabedoria
do mundo; para que se reconheça que toda a virtude, e todo o bem é
dele e não da criatura, e para que ninguém se possa gloriar na
presença dele; mas quem se gloriar se glorie no Senhor, a quem
pertence toda a honra e glória na eternidade".

Então Frei Masseo, ouvindo tão humilde resposta, dada com tanto
fervor, se espantou e conheceu certamente que S. Francisco estava
fundado na verdadeira humildade.

Em louvor de Cristo. Amém.

Capítulo 9. Como S. Francisco ensinava Frei leão a responder, e este só pode dizer o contrário do que S. Francisco queria.




Estando uma vez S. Francisco, no princípio da Ordem, com Frei
Leão em um convento, onde não havia livro para rezar o ofício
divino, ao chegar a hora de Matinas, disse S. Francisco a Frei Leão:
"Caríssimo, não temos breviário, com que possamos rezar Matinas:
mas, a fim de passarmos o tempo louvando a Deus, eu direi e tu me
responderás como te ensinar; e toma cuidado, não digas as palavras
de modo diverso do que te ensinar.

Direi assim: 'Ô irmão Francisco, praticaste tanto mal, tais pecados
no século que és digno do inferno'; e tu, irmão Leão, responderás:
'Verdadeira coisa é que mereces o inferno profundíssimo"'- E Frei
Leão, com simplicidade columbina, respondeu: "Estou pronto, pai,
começa em nome de Deus".

Então S. Francisco começou a dizer: "Ó irmão Francisco, praticaste
tantos males e tantos pecados no século, que és digno do inferno".
E Frei Leão respondeu: "Deus fará por ti tantos bens, que irás ao
paraíso". Disse S. Francisco: "Não digas assim, irmão Leão; mas
quando eu disser: 'Irmão Francisco, praticaste tanta coisa iníqua
contra Deus, que és digno de ser maldito por Deus', responderás:
'Em verdade és digno de ficar mesmo entre os malditos"'.

E Frei Leão respondeu: "De boa mente, pai".

Então S. Francisco, entre muitas lágrimas e suspiros e a bater no
peito, disse em altas vozes: "Ó meu Senhor do céu e da terra; cometi
contra ti tantas iniqüidades e tantos pecados que por isso sou digno
de ser amaldiçoado por ti".

E Frei Leão respondeu: "Ó irmão Francisco, Deus te fará tal, que
entre os benditos serás singularmente bendito". E S. Francisco,
maravilhando-se de Frei Leão responder sempre o contrário do que
ele havia ordenado, repreendeu-o, dizendo: "Por que não respondes
como te ensino? Ordeno-te, pela santa obediência, que respondas
como te ensinar.

Direi assim: '(' irmão Francisco miserável, pensas tu que Deus há de
ter misericórdia de ti; não é tão certo que tens cometido tantos pecados contra o Pai da misericórdia e o Deus de toda consolação,
de modo que não és digno de encontrar misericórdia?' E tu, irmão
Leão, ovelhinha, responderás: 'De nenhum modo és digno de
alcançar misericórdia"'. Mas depois, quando S. Francisco disse: "O
irmão Francisco miserável", etc., então Frei Leão respondeu: "Deus
Pai, cuja misericórdia é infinita mais do que o teu pecado, fará em ti
grande misericórdia e te encherá de muitas graças".

A esta resposta S. Francisco docemente irritado e pacientemente
perturbado disse a Frei leão: "Por que tiveste a presunção de ir
contra a obediência, e por tantas vezes respondeste o contrário do
que te impus?" Respondeu Frei Leão muito humilde e
reverentemente: "Deus o sabe, pai meu, que cada vez tive vontade
de responder como me ordenaste: mas Deus me fez falar como quis
e não como eu queria".

Do que S. Francisco se maravilhou e disse a Frei Leão: "Peço-te
afetuosamente que desta vez me respondas como te disser".

Respondeu Frei Leão: "Dize em nome de Deus, que por certo
responderei desta vez como queres". E S. Francisco, entre lágrimas,
disse: "Ó irmão Francisco miserável, pensas que Deus terá
misericórdia de ti?" Responde Frei Leão: "Antes grandes graças
receberás de Deus e serás exaltado e glorificado na eternidade,
porque quem se humilha será exaltado: e eu não posso dizer de
outro modo, porque Deus fala pela minha boca".

E assim nesta humilde contenda, com muitas lágrimas e muita
consolação espiritual, velaram até ao amanhecer.



Em louvor de Cristo. Amém.


Capítulo 8. Como a caminhar expôs S. Francisco a Frei Leão as coisas que constituem a perfeita alegria.



Vindo uma vez S. Francisco de Perusa para S. Maria dos Anjos com
Frei leão em tempo de inverno, e como o grandíssimo frio
fortemente o atormentasse, chamou Frei Leão, o qual ia mais à
frente, e disse assim: "Irmão Leão, ainda que o frade menor desse
na terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação,
escreve todavia, e nota diligentemente que nisso não está a perfeita
alegria".

E andando um pouco mais, chama pela segunda vez: "`S irmão
Leão, ainda que o frade menor desse vista aos cegos, curasse os
paralíticos, expulsasse os demônios, fizesse surdos ouvirem e
andarem coxos, falarem mudos, e mais ainda, ressuscitasse mortos
de quatro dias, escreve que nisso não está a perfeita alegria". E
andando um pouco, S. Francisco gritou com força: "Ó irmão Leão,
se o frade menor soubesse todas as línguas e todas as ciências e
todas as escrituras e se soubesse profetizar e revelar não só as
coisas futuras, mas até mesmo os segredos das consciências e dos
espíritos, escreve que não está nisso a perfeita alegria".

Andando um pouco além, S. Francisco chama ainda com força: "Õ
irmão Leão, ovelhinha de Deus, ainda que o frade menor falasse com
língua de anjo e soubesse o curso das estrelas e as virtudes das
ervas; e lhe fossem revelados todos os tesouros da terra e
conhecesse as virtudes dos pássaros e dos peixes e de todos os
animais e dos homens e das árvores e das pedras e das raízes e das
águas, escreve que não está nisso a perfeita alegria".

E caminhando um pouco, S. Francisco chamou em alta voz: "Ô
irmão Leão, ainda que o frade menor soubesse pregar tão bem que
convertesse todos os infiéis à fé cristã, escreve que não está nisso a
perfeita alegria".

E durando este modo de falar pelo espaço de duas milhas, Frei Leão,
com grande admiração, perguntou-lhe e disse: "Pai, peço-te, da
parte de Deus, que me digas onde está a perfeita alegria". E S.
Francisco assim lhe respondeu: "Quando chegarmos a S. Maria dos
Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios
de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento' e o porteiro chegar irritado e disser: 'Quem são vocês?'; e nós
dissermos: "'Somos dois dos vossos irmãos', e ele disser: 'Não
dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o
mundo e roubando as esmolas dos pobres; fora daqui'; e não nos
abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva com frio e fome
até à noite: então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos
maus tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem
murmurarmos contra ele e pensarmos humildemente e
caritativamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha
reconhecido e que Deus o fez falar contra nós: ó irmão Leão,
escreve que nisso está a perfeita alegria.

E se perseverarmos a bater, e ele sair furioso e como a importunos
malandros nos expulsar com vilanias e bofetadas dizendo: 'Fora
daqui, ladrõezinhos vis, vão para o hospital, porque aqui ninguém
lhes dará comida nem cama'; se suportarmos isso pacientemente e
com alegria e de bom coração, ó irmão Leão, escreve que nisso está
a perfeita alegria. E se ainda, constrangidos pela fome e pelo frio e
pela noite, batermos mais e chamarmos e pedirmos pelo amor de
Deus com muitas lágrimas que nos abra a porta e nos deixe entrar, e
se ele mais escandalizado disser: 'Vagabundos importunos, pagar-lhes-
ei como merecem': e sair com um bastão nodoso e nos agarrar
pelo capuz e nos atirar ao chão e nos arrastar pela neve e nos bater
com o pau de nó em nó: se nós suportarmos todas estas coisas
pacientemente e com alegria, pensando nos sofrimentos de Cristo
bendito, as quais devemos suportar por seu amor; ó irmão Leão,
escreve que aí e nisso está a perfeita alegria, e ouve, pois, a
conclusão, irmão Leão.

Acima de todas as graças e de todos os dons do Espírito Santo, os
quais Cristo concede aos amigos, está o de vencer-se a si mesmo, e
voluntariamente pelo amor suportar trabalhos, injúrias, opróbrios e
desprezos, porque de todos os outros dons de Deus não nos
podemos gloriar por não serem nossos, mas de Deus, do que diz o
Apóstolo: 'Que tens tu que o não hajas recebido de Deus? E se dele
o recebeste, por que te gloriares como se o tivesses de ti?' Mas na
cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque
isso é nosso e assim diz o Apóstolo: "Não me quero gloriar, senão
na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo"'.


Ao qual sejam dadas honra e glória in secula seculorum.
Amém.

Capítulo 7. Como S. Francisco fez uma Quaresma em uma ilha do lago de Perusa, onde jejuou quarenta dias e quarenta noites e nada comeu além de meio pão.


Por ter sido o verídico servo de Cristo, monsior S. Francisco, em
certas coisas, quase um outro Cristo dado ao mundo para a
salvação dos homens, Deus Pai o quis fazer em muitas ações
conforme e semelhante a seu filho Jesus Cristo; como no-lo
demonstrou no venerável colégio dos doze companheiros, e no
admirável mistério dos sagrados estigmas e no prolongado jejum da
santa Quaresma, que fez deste modo.

Indo por uma feita S. Francisco, em dia de carnaval, ao lago de
Perusa, à casa de um seu devoto, onde passou a noite, foi inspirado
por Deus para observar aquela Quaresma em uma ilha do dito lago.

Pelo que S. Francisco pediu àquele devoto, pelo amor de Cristo, o
levasse em sua barquinha a uma ilha do lago, onde não habitasse
ninguém, e isto fizesse na noite de Quarta-feira de Cinzas sem que
nenhuma pessoa o percebesse; e ele, pelo amor da grande devoção
que tinha a S. Francisco, solicitamente atendeu-lhe ao pedi-lo e o
transportou à dita ilha: e S. Francisco só levou consigo dois
pãezinhos.

E, chegando à ilha e o amigo partindo para voltar a casa, S.
Francisco lhe rogou por favor que não revelasse a quem quer que
fosse a sua permanência na ilha e só o fosse procurar na Quinta-feira
Santa; e assim o outro se foi. E S. Francisco ficou sozinho: e ali
não havendo habitação em que ficasse, entrou num bosque muito
copado, no qual muitos espinheiros e arbustos se reuniam a modo
de uma cabana ou de uma cova, e naquele lugar se pôs em oração e
a contemplar as coisas celestiais.

E ali passou toda a Quaresma sem comer nem beber, além da
metade de um daqueles pãezinhos, conforme o que encontrou o seu
devoto na Quinta-feira Santa, quando o foi procurar: o qual achou
dois pãezinhos, um inteiro e outro pela metade.

E a outra metade acredita-se S. Francisco ter comido em reverência
ao jejum do Cristo bendito, que jejuou quarenta dias e quarenta
noites sem tomar nenhum alimento material.

E assim, com aquele meio pão, expulsou de si o demônio da
vanglória e, a exemplo de Cristo, jejuou quarenta dias e quarenta
noites. E depois, naquele lugar, onde S. Francisco fizera tão
maravilhosa abstinência, realizou Deus muitos milagres pelos
méritos dele; pela qual coisa começaram os homens a edificar casas
e habitá-las; e em pouco tempo construiu-se um bom e grande
castelo e houve um convento de frades, o qual se chama o convento
da Ilha; e ainda os homens e mulheres daquela aldeia têm grande
reverência por aquele lugar, onde S. Francisco passou a dita
Quaresma.

Em louvor de Cristo. Amém.


Capítulo 6. Como S. Francisco abençoou o santo Frei Bernardo e o deixou como seu vigário, quando passou desta para a outra vida.


Era Frei Bernardo de tanta santidade, que S. Francisco tinha por ele
grande reverência e freqüentemente o louvava.

Estando um dia S. Francisco devotamente em oração, foi-lhe
revelado por Deus que Frei Bernardo, por permissão divina, devia
sustentar muitas e pungentes batalhas com o demônio.

Pelo que S. Francisco, tendo grande compaixão do dito Frei
Bernardo, a quem amava como a filho, muitos dias orou com
lágrimas, rogando a Deus por ele e recomendando-o a Jesus Cristo,
que lhe desse vitória sobre o demônio.

E orando assim devotamente S. Francisco, Deus lhe respondeu:
"Não temas, porque todas as tentações, com as quais Frei Bernardo
deve ser combatido, são por Deus permitidas como exercício de
virtude e coroa de mérito; e finalmente de todos os inimigos
alcançará vitória, porque ele é um dos comensais do reino de Deus".

Da qual resposta S. Francisco recebeu grandíssima alegria e rendeu
graças a Deus: e daquela hora em diante lhe dedicou sempre mais
amor e reverência.

E bem lho demonstrou não só em vida mas até na morte. Porque,
vindo S. Francisco a morrer, como o santo patriarca Jacó, estando
em tomo dele seus dedicados filhos doridos e lacrimosos pela
partida de tão amado pai, perguntou: "Onde esta o meu
primogênito? Vem a mim, filho, para que a 'mia alma te bendiga,
antes de minha morte".

Então Frei Bernardo disse em segredo a Frei Elias, que era vigário
da Ordem: "Pai, coloca-te à mão direita do santo, para que ele te
abençoe".

E, colocando-se Frei Elias à mão direita, S. Francisco, que perdera a
vista pelo muito chorar, pôs a mão direita sobre a cabeça de Frei
Elias e disse: "Esta não é a cabeça do meu primogênito Frei
Bernardo".

Então Frei Bernardo adiantou-se à esquerda; e S. Francisco,
estendendo os braços em forma de cruz, colocou a mão direita à
cabeça de Frei Bernardo e a esquerda na de Frei Elias, e disse a Frei
Bernardo: "Abençoe-te o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo com
todas as bênçãos espirituais e celestiais em Cristo: pelo fato de
teres sido o primeiro escolhido nesta Ordem para dar o exemplo
evangélico e seguir a Cristo na pobreza evangélica; porque deste o
que possuías e o distribuíste inteira e livremente com os pobres pelo
amor de Cristo, mas ainda te ofereceste a ti mesmo nesta Ordem em
sacrifício de suavidade.

Bendito sejas, pois, por Nosso Senhor Jesus Cristo e por mim, seu
pobrezinho servo, com bênçãos eternas, quer caminhando,
repousando, velando e dormindo, vivendo e morrendo. Quem te
bendisser fique cheio de bênçãos e quem te maldisser não fique
sem punição.

Sê o principal entre os teus irmãos, obedeçam todos os irmãos ao
que ordenares: terás licença para receber e expulsar a quem
quiseres e nenhum irmão terá poder sobre ti, e ser-te-á permitido ir e
habitar onde te aprouver".

Depois da morte de S. Francisco os irmãos amaram e reverenciaram
a Frei Bernardo como a pai venerável: e estando a morrer, vieram a
ele muitos irmãos das diversas partes do mundo, entre os quais, o
hierárquico e divino Frei Egídio, o qual com grande alegria disse:
"Sursum corda, Frei Bernardo, sursum corda"; e Frei Bernardo disse
em segredo a um irmão que preparasse para Frei Egídio um lugar
apto à contemplação, e assim foi feito.

Chegando Frei Bernardo à hora da morte, mandou que o erguessem
e falou aos irmãos que estavam diante dele, dizendo: "Caríssimos
irmãos, não vos quero dizer muitas palavras: mas deveis considerar
que no estado de religião em que vivi vós viveis, e no em que estou
agora vós ainda estais, e acho isto em minha alma, que por mil
mundos iguais a este não teria querido servir a outro senhor senão a
Jesus Cristo: e de todos os pecados que cometi me acuso e
apresento a minha culpa ao meu Salvador Jesus e a vós.

Rogo-vos, irmãos meus, que vos ameis uns aos outros"- E após
estas palavras e outros bons ensinamentos, deitando-se na cama, sua face encheu-se de esplendor e alegria desmedidos, de que os
irmãos muito se maravilharam; e naquela letícia sua alma
santíssima, cercada de glória, passou da presente à bem-aventurada
vida dos anjos.


Pelo louvor e pela glória de Cristo. Amém.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Capítulo 5. Como o santo Frei Bernardo de Assis foi enviado por S. Francisco a Bolonha e ali fundou um convento.



Porque S. Francisco e seus companheiros foram por Deus
chamados e escolhidos para levar com o coração e as obras, e a
pregar com a língua, a cruz de Cristo, pareciam e eram homens
crucificados, quanto às ações e à vida austera: e, portanto,
desejavam mais suportar vergonha e opróbrios pelo amor de Cristo,
do que ser honrados pelo mundo com reverências ou vãos louvores;
rejubilavam-se com as injúrias e contristavam-se com as honras; e
assim andavam pelo mundo como estrangeiros e forasteiros, nada
mais levando consigo do que o Cristo crucificado.

E como eram verdadeiros ramos da verdadeira vide, isto é, Cristo,
produziam grandes e bons frutos nas almas, as quais ganhavam
para Deus. Sucedeu, no princípio da Ordem, S. Francisco mandar
Frei Bernardo a Bolonha para que ai, conforme a graça que Deus lhe
havia concedido, obtivesse fruto para Deus. E Frei Bernardo,
fazendo o sinal-da-cruz, por santa obediência se foi e chegou a
Bolonha.

E vendo-o as crianças, com hábito desusado e vil, zombavam dele e
o injuriavam, como se faz com um louco. E Frei Bernardo, paciente e
alegre, tudo suportava pelo amor de Cristo; até para que o
pudessem maltratar melhor, pôs-se muito de propósito na praça da
cidade; onde, se assentando, em torno dele se reuniram muitos
meninos e homens; um lhe puxava o capuz por detrás, outro por
diante, outro lhe atirava pó e pedra, outro o empurrava para cá e
para lá; e Frei Bernardo sempre o mesmo, com a mesma paciência,
com o semblante alegre, não se lastimava nem se aborrecia; e por
muitos dias voltou ao mesmo ponto para suportar semelhantes
coisas.

E por ser a paciência obra de perfeição e prova de virtude, um sábio
doutor em leis, vendo e considerando tanta constância e virtude de
Frei Bernardo em não se perturbar por tantos dias por nenhuma
moléstia ou injúria, disse de si consigo: "Impossível é não ser este
um santo homem".

E, acercando- se dele, perguntou-lhe: "Quem és? E por que vieste
aqui?" E Frei Bernardo, como resposta, levou a mão ao peito e tirou a Regra de S. Francisco e deu-lha para que a lesse; e tendo-a lido,
considerando-lhe o elevado estado de perfeição, com grandíssimo
pasmo e admiração, voltou-se para os companheiros e disse:
"Verdadeiramente é este o mais alto estado de religião, de que ouvi
falar; e, portanto, este e os seus companheiros são dos mais santos
homens do mundo, e comete grandíssimo pecado quem o injuria; o
qual devia ser altamente honrado, porque é verdadeiramente amigo
de Deus".

E disse a Frei Bernardo: "Se quiserdes ficar em um lugar em que
podeis convenientemente servir a Deus, vo-lo darei de boa vontade,
para a salvação de minha alma". Respondeu Frei Bernardo: "Senhor,
creio que isto vos foi inspirado por Nosso Senhor Jesus Cristo, e
portanto de boa vontade aceito vosso oferecimento para a honra de
Cristo". Então o dito juiz, com grande alegria e caridade, levou Frei
Bernardo à sua casa; e depois lhe deu o lugar prometido, e à sua
custa preparou e arranjou tudo, e daí em diante se fez como pai e
defensor de Frei Bernardo e de seus companheiros.

E Frei Bernardo, por sua santa conversação, começou a ser muito
honrado por aquela gente, de modo que bem-aventurado se
considerava quem nele podia tocar ou vê-lo. Ele, porém, como
verdadeiro discípulo de Cristo e do humilde S. Francisco, temendo
que a honra do mundo impedisse a paz e a salvação de sua alma,
partiu dali e retornou a S. Francisco, e disse-lhe assim: "Pai, o
convento está fundado na cidade de Bolonha: enviai irmãos que o
mantenham e o habitem, porque nada de bom posso fazer, pois,
devido às muitas honras que me prestam, temo perder mais do que
ganhar".

Então S. Francisco, ouvindo todas estas coisas que Deus tinha
realizado por Frei Bernardo, deu graças a Deus, que assim
começava a aumentar os pobrezinhos discípulos da cruz; e logo
mandou companheiros a Bolonha e à Lombardia, os quais
instituíram muitos conventos em diversos lugares.

Em louvor e reverência do bom Jesus.