São Francisco de Assis

São Francisco de Assis

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Capítulo 3. Como S. Francisco, por um mau pensamento que teve contra Frei Bernardo, ordenou ao dito Frei Bernardo que por três vezes lhe pisasse a garganta e a boca.


O devotíssimo servo do Crucificado, monsior S. Francisco, por
causa da aspereza da penitência e contínuo chorar, ficara quase
cego e quase não via o lume.

Uma vez, entre outras, partiu do convento, onde estava e foi ao
convento onde vivia Frei Bernardo, para com ele falar das coisas
divinas: e, chegando ao convento, soube que ele estava na floresta
em oração, todo enlevado e absorvido em Deus. Então S. Francisco
foi à floresta e o chamou: "Vem, disse, e fala a este cego"; e Frei
Bernardo não lhe respondeu nada, porque, sendo homem de grande
contemplação, tinha a mente suspensa e enlevada em Deus, e
porque tinha a graça singular de falar de Deus, como S. Francisco
tinha por vezes experimentado: e portanto desejava falar com ele.

Depois de algum tempo, chamou-o do mesmo modo, segunda e
terceira vez; e de nenhuma vez Frei Bernardo o ouviu, por isso não
lhe respondeu e não se foi a ele. Pelo que S. Francisco se partiu um
pouco desconsolado; maravilhando-se e lastimando-se só consigo
de que Frei Bernardo, chamado por três vezes, não lhe fora ao
encontro.

Partindo-se com este pensamento, S. Francisco, quando se afastou
um pouco, disse ao seu companheiro: "Espera-me aqui". Distanciou-se
para um lugar solitário e, pondo-se em oração, rogava a Deus que
lhe revelasse por que Frei Bernardo não lhe havia respondido; e
assim estando, veio uma voz de Deus que lhe disse assim: "Ó pobre
homenzinho, por que estás perturbado? deve o homem deixar Deus
pela criatura? Frei Bernardo, quando o chamaste, estava junto de
mim; e portanto não podia vir ao teu encontro, nem te responder;
não te admires, pois, de que ele te não pudesse responder; porque
estava tão fora de si que de tuas palavras nada escutou". Tendo tido
S. Francisco esta resposta de Deus, imediatamente com grande
pressa voltou a Frei Bernardo, para acusar-se humildemente do
pensamento que tivera contra ele.

E Frei Bernardo, vendo-o vir para ele, foi-lhe ao encontro e lançou-se-lhe
aos pés. Então S. Francisco o fez levantar-se e referiu-lhe com grande humildade o pensamento e a perturbação que tivera contra
ele, e como Deus lhe havia respondido, assim concluindo: "Orde note
pela santa obediência que faças o que te mandar".

Temendo Frei Bernardo que S. Francisco lhe ordenasse alguma
coisa excessiva, como soía fazer, quis honestamente esquivar-se
desta obediência, e assim respondeu: "Estou pronto a obedecer-vos,
se me prometerdes de fazer o que eu vos ordenar a vós". E
prometendo S. Francisco, Frei Bernardo disse: "Ora, dizei, pai, o que
quereis que eu faça".

Então disse S. Francisco: "Ordeno-te pela santa obediência que,
para punir a minha presunção e a ousadia do meu coração, quando
eu me deitar de costas, me ponhas um pé na garganta e outro na
boca e assim passes sobre mim três vezes, envergonhando-me e
vituperando-me e especialmente dizendo-me: 'Jaz para aí, vilão filho
de Pedro Bernardone: de onde te vem tanta soberba, vilíssima
criatura que és?"' Ouvindo isto, e bem que lhe custasse muito a fazê-lo,
no entanto por santa obediência, o mais cortesmente que pôde,
realizou o que S. Francisco lhe ordenara.

Isto feito, disse S. Francisco: "Ora, ordena-me o que queres que eu
faça; porque te prometi obedecer". Disse Frei Bernardo: "Ordeno-te
pela santa obediência que, todas as vezes que estivermos juntos,
me repreendas e corrijas asperamente dos meus defeitos".

Do que S. Francisco muito se maravilhou; porque Frei Bernardo era
de tanta santidade que ele lhe tinha grande reverência e não o
reputava repreensível em coisa nenhuma; e por isso dali em diante
S. Francisco evitava de estar muito com ele, pela dita obediência, a
fim de não dizer alguma palavra de correção contra ele, o qual
reputava de tanta santidade; mas, quando sentia vontade de vê-lo ou
de ouvi-lo falar de Deus, dele se separava o mais depressa possível
e se partia; e era motivo de grande devoção ver-se com que caridade
e reverência e humildade o santo Pai Francisco tratava e falava com
Frei Bernardo, seu filho primogênito.

Em louvor e glória de Jesus Cristo e do pobrezinho Francisco.
Amém.

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